Pedalar até chegar à Índia: assim se deambula por Lisboa

27-07-2022

CRÓNICA

Recuperei um velho hábito que só os meus tempos livres permitiam: deambular por Lisboa, sem horas e sem rumos. O resultado foi uma dose de Vitamina D para o corpo, uma passagem pelo sul da Ásia e um passeio a 5 km/h de bicicleta numa das mais badaladas artérias da capital.

GONÇALO MARTINS  |  27 de julho de 2022, 23H52

Imagem de capa - Campo Grande. Fotografia Gonçalo Martins

Imagem composta por elementos do banco de fotos do Canva
Imagem composta por elementos do banco de fotos do Canva

A semana em que estamos acordou na minha memória a palavra deambular. É um termo usado para descrever a poesia de Cesário Verde: o sujeito dos poemas passeia sem direção nas ruas. Deixa-se absorver por tudo o que os cinco sentidos conseguem captar.

Voltei a ser o "observador acidental" de Cesário Verde como há muito tempo não era. Na quarta-feira, dia 27 de julho, parti do Campo Grande sem destino. O meu primeiro impulso foi pegar numa bicicleta GIRA e ir até aonde a minha vontade me levasse. Quis ela que o primeiro spot fosse a Alameda.

Vou pela Avenida da República em pedal de caracol e, já numa rua perpendicular a esta, paro num quiosque e compro o jornal PÚBLICO. Tenho a assinatura online, mas, uma vez ou outra, gosto de sentir o papel. Percorremos tantos quilómetros em scrolls nas redes sociais e em sites que sabe bem parar no mundo físico também. Quem não se mostra muito feliz por eu estar a parar no mundo físico é o vendedor do quiosque. De cara trancada lá me disse que ainda tem o jornal e quanto custa. Um dia mau todos temos, penso. 


"O meu primeiro impulso foi pegar numa bicicleta GIRA e ir até aonde a minha vontade me levasse" 

Estação de bicicletas GIRA junto ao Museu de Lisboa. Fotografia Gonçalo Martins

Chegado à Alameda, leio primeiro numa esplanada e depois num banco de jardim. Aqui estão duas senhoras com uma idade de respeito (a minha forma mais pomposa de dizer idosos). Enquanto leio que o presidente da Tunísia através de mudanças na Constituição - aprovadas em referendo com uma expressiva maioria (92 a 93%), mas com uma participação popular de apenas 28% - ia reforçar poderes, lá estão as senhoras na arte de coscuvilhar e falar sobre a vida dos outros. A verdade é que os três fazemos a mesma coisa. Eu exploro a vida dos de longe, as senhoras a vida dos de cá.

Curioso este poder que um banco tem para mover mundos. Por um lado temos o mundo financeiro, fechado em edifícios frios, construídos com tijolo e cimento, e que movimentam valores invisíveis servidos em cartões. Por outro temos o mundo real, simples e modesto, em que bastam duas tábuas de madeira e suportes metálicos para aguentar o peso de horas de conversas entre pessoas.

Passada uma lenta meia hora e sem preocupações, continuo a minha viagem pela cidade. Novamente na bicicleta, desço a Avenida Almirante Reis. Estava curioso para pedalar na ciclovia mais polémica de Lisboa. A única preocupação que tinha eram os cruzamentos e se algum carro poderia passar de repente à minha frente. Rapidamente percebi a mecânica dos sinais luminosos (simples, de facto: circula-se como os carros em paralelo - eles param, tu paras; esses só podem ir em frente ou virar à direita). Se uma ambulância passasse, bastava abrandar ou subir para o passeio que serve de separador central. De resto, não vejo nenhum problema à primeira vista.

A paragem final que traço para o fim do dia é o Jardim da Cerca da Graça. É um dos cantinhos paralelos à Almirante Reis no emaranhado bairro da Graça. Ruas estreitas, com o passo dos transeuntes em modo elevador sobe e desce, assentes em carris na estrada. Nesses carris apanho o 28. Nesta quarta, pelas 18h, está a meio gás, mas em plena onda de calor abrasador neste mês, pelas 17h30 do dia 14 de julho, o elétrico ia a abarrotar em estilo sauna. Confesso que a viagem de hoje é mais agradável - só que não há discussões como no dia 14 que sempre apimentam a viagem.

Chegado ao jardim, uma toalha estendida. Momento de pura existência ao Sol apenas quebrado quando passavam cães ao meu lado (muitos donos não metem trela) e por dois vendedores ambulantes. Não percebi o que eles diziam: ou era para vender erva ou cerveja. Digo que não quero - afinal não sou lá muito fã dos dois, deixo para quem gosta. De nada.


"Digo que não quero - afinal não sou lá muito fã dos dois, deixo para quem gosta"

Ao sair dali, sem conhecer as ruas e não querendo usar o Maps, deixo-me deambular. É aqui o auge da experiência. Passo pela Rua do Benformoso, que não conhecia. Os rostos e os estabelecimentos com placas noutras línguas levam-me para o sul asiático.

Nestes dias estou a ler um livro do jornalista Paulo Moura: «Cidades do Sol». É o relato de viagens feitas pelo também professor da Escola Superior de Comunicação Social a "grandes metrópoles da Ásia", em países como a Coreia do Sul, a China ou a Índia. O primeiro capítulo traz o leitor a Bangalore, uma "cidade desgrenhada" na Índia.

Tornou-se inevitável não tentar comparações com o relato feito nesta cidade. Os cheiros a fezes não estão presentes, mas há uma confusão na rua. Uma boa confusão. A rua estreita, de estrada com sentido único e passeios (muito) pequenos aproximam as pessoas. Os moradores e os comerciantes conversam. Um senhor prepara e fuma drogas num canto. Espreito os cafés, os restaurantes, os mini-mercados e o barbeiro e vejo os sorrisos e as preocupações.

Olho em todas as direções num silêncio atento ao ambiente que aqui está. Sinto que viajo durante estes minutos. No fim da rua regresso a Portugal. Não foi preciso um bilhete de avião para me transportar mais de 10 mil quilómetros. Uma pequena amostra de uma realidade distante esteve ao meu lado.


Entretanto, sabiam que as bicicletas elétricas da GIRA têm bateria? Parece óbvio, não é? Realmente é. Só nos apercebemos que as baterias existem quando elas estão quentes e sobem a temperatura das nossas mãos ou quando acabam. E assim faço por momentos a Almirante Reis a 5 km/h, sem bateria na bike, até que desisto e vou até à Alameda no passeio a andar a pé.

No regresso a casa, um pensamento: vou começar a trabalhar. Mesmo que tenha cinco de sete dias ocupados, vale a pena tirar umas horas para deambular pelo mundo real. Se não são estas experiências e pormenores que nos enriquecem, então é o quê? A alma agradece e o senhor do quiosque com cara trancada também, mesmo que não o mostre.


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